As respostas bíblicas
para esta pergunta são ambíguas e vagas. Isto porque alguns defendem que a
Bíblia não deve ser lida literalmente, o que dá margem a inúmeras
interpretações. Mas geralmente os cristãos (bíblicos) acreditam piamente na
existência de uma entidade que encerra em si a essência da maldade. Sem
perguntar como é possível que um ser criado santo e puro pudesse se tornar algo
completamente perverso e egoísta, saem por aí proclamando causas externas a
coisas que são da responsabilidade dos humanos.
Comecemos nossa
análise pela Bíblia. É fato que o nome de Satã - e seus supostos heterônimos -
são mencionados na Bíblia. A maioria das pessoas esclarecidas atribui isso a
uma espécie de mal interior, o que me parece bem mais coerente. Outros dizem
arbitrariamente que se trata de um ser real, existente em si mesmo e
independente de nós. É interessante notar que as menções ao Diabo, Satanás,
Demônio, são abundantes no Novo Testamento, mas não no Antigo. O tal anjo caído
é citado claramente primeiro no livro de Jô. Além deste livro, aparece também
no livro de Crônicas e no livro de Zacarias. Uma vaga aparição é aquela da
serpente do livro de Gênesis e outra no livro de Isaías. Existem referências a
Satã em alguns textos apócrifos Hebreus, como no livro dos Jubileus (entre 135
a.C a 105 a.C) e no Testamento dos Doze patriarcas (entre 109 a.C e 106 a.C) e
na literatura apocalíptica judaica.
Os cristãos se atiram
numa batalha ferrenha contra Satã, mas não os antigos hebreus. A luta dos
antigos hebreus inicialmente era contra os ídolos, não contra os demônios. E
para os hebreus os ídolos eram apenas estátuas e a adoração a eles era proibida
simplesmente porque desagradava a Deus. Ao que parece os hebreus não tinham uma
noção de mal absoluto antes da era de Jó. E por que será? Perguntaria um espírito
crítico. No tempo de Jó os hebreus estavam cativos na Babilônia e provavelmente
tiveram contato com outras culturas, como a persa, absorvendo da idéia de
Ahriman, o “mal intencionado”, o deus do mal de Zaratustra, como sendo o
culpado do mal que eles estavam sofrendo. Mas diferentemente do que é para os
cristãos o Deus dos hebreus não era um deus todo bondoso. Ele era a causa de
todas as coisas, tanto boas como ruins. Em Isaías está escrito: “eu crio a luz
e a escuridão. E faço tanto o bem como o mal. Eu, o Senhor, faço todas estas
coisas” ( Is; 45.7). Assim, para os hebreus, o demônio era como um empregado de
Deus. Além do mais, a palavra Satanás não é um substantivo próprio. Para os
antigos hebreus, o tal adversário era uma espécie de promotor com a função de
acusar os réus no dia do julgamento ou testar a fé dos humanos. Mas aqui ele
não tem liberdade pra fazer o que bem quer, ele só faz o que Deus ordena.
Também o é o vocábulo grego “Diabolos”, donde surge “Diabo” que é a maneira da
qual Satã é chamado no Novo Testamento. Esta palavra significa “acusador”, ou
seja, promotor. Existem partes muito interessantes na Bíblia que provam isto e
que geralmente é negligenciada pelos crentes. Existem claras referências a um
“espírito mal da parte de Deus” (Jz 9.25, 1Sm 16.14, 18.10 e 19.9). Qual é o
deus bondoso que mandaria espíritos malignos atormentar seus filhos?
No caso da serpente
do Gênesis, é provável que Moisés, o suposto autor do Pentateuco, sequer
conhecesse a lenda de Satã. Muito menos Abraão, o patriarca do povo judeu. Se
Satanás é mesmo um ser real, porque Deus esconderia esta verdade dos seus
servos mais amados? É curioso que o relato da queda dos anjos deveria ser dito
no primeiro livro, mas somente no Apocalipse de São João, o último livro da Bíblia
é que se conta, supostamente, a queda dos anjos. E é somente neste livro que se
diz que a serpente do Gênesis é o mesmo Satã. Inspirações divinas à parte,
porque parece que somente as pessoas do tempo do apóstolo João sabiam de tal
coisa? É provável que o relato do Gênesis seja simplesmente uma fábula, já que
serpente em hebraico diz-se "nahash", que é sinônimo de
"astúcia". Assim sendo pode ser que o que Moisés queria dizer é que a
astúcia dentro do homem é quem disse para eles desobedecerem a Deus. Tudo não
passa de uma sábia alegoria. Os antigos judeus não acreditavam em um mal em
pessoa.
E quanto ao Novo
Testamento? Os apóstolos de Jesus dão muita ênfase ao Diabo, até mais que a
Deus. No tempo de Jesus existiam muitos dos já citados textos apocalípticos.
Nestes textos dava-se muita importância aos demônios, mas eram apenas histórias
populares e literárias. No entanto a elite judaica assimilou muitas das crenças
populares presentes nos textos apocalípticos e incorporaram à religião, mas
logo abandonou estas crenças, povo novamente Satã como um ser abstrato, a
despeito do cristianismo, que continuou batendo nessa mesma tecla por milênios.
Mas ao que parece, para os cristãos primitivos o Diabo também era um ser
abstrato, inclusive no apocalipse de São João e na passagem da tentação de
Cristo. Para Paulo de Tarso, não deveríamos confiar em anjo algum, sendo que o
Cristo já tinha vindo para ser o mediador entre os homens e Deus, ou seja, os
anjos eram totalmente inúteis. Talvez ele conhecesse a lenda de Satã, mas não
lhe dava muita importância e nem fazia distinções entre anjos bons e maus.
Somente depois que os apóstolos morreram é que os cristãos demonizaram os
deuses pagãos Asmodeu, Astaroth, Baal, Baal-Berith, Dagon, Moloch entre outros,
que para os hebreus eram apenas estátuas. Até o deus Poseidon dos gregos foi
demonizado e seu tridente, um mero instrumento de pesca, se tornou um símbolo
do Mal e os deuses pagãos foram mostrados como demônios ou o próprio Satã
tentando usurpar para si os louvores que eram de Deus "por direito".
Para alguém que se
baseia na razão para explicar a realidade fica claro que a idéia de demônios
foi absorvida pelo contato com outras culturas. Em nenhum momento, além do
livro de Jó, fala-se claramente de um "mal em pessoa" e só uma menção
ao Diabo em toda a Bíblia não é bastante para validar sua existência. "Em
nenhum momento não!", diria um crente. "E o Apocalipse?". O
trunfo dos cristãos é o texto escrito por São João onde se fala muito sobre um
tal "dragão", duas bestas e um Anti-Cristo, que são identificados
como sendo o próprio Belzebu. Conta também um relato sobre umas estrelas que
foram jogadas na terra, que os cristãos dizem ser uma evidência da batalha no
céu. Neste texto Satã é desmascarado, suas origens e ambições são mostradas e
ele é identificado com a antiga serpente do Gênesis. E agora? Como duvidar da
existência de Satã diante de "provas" tão convincentes? Será mesmo? É
interessante que o trunfo dos cristãos se torne meu golpe de misericórdia no
Diabo como é compreendido hoje.
O que nos diz o
Apocalipse?
“E viu-se um sinal no
céu: uma mulher vestida de sol, tendo a lua debaixo dos pés e uma coroa de doze
estrelas sobre a cabeça. E estava grávida e com dores de parto e gritava com
ânsia de dar à luz.
E viu-se outro sinal
no céu, e eis que era um grande dragão vermelho, que tinha sete cabeças e dez
chifres e, sobre as cabeças, sete diademas.
E sua calda levou
após si a terça parte das estrelas do céu e lançou-as sobre a terra; e o dragão
parou diante da mulher que havia de dar à luz, para que, dando ela à luz, lhe
devorasse o filho.
E deu a luz um filho,
um varão que há de reger todas as nações com vara de ferro; e o seu filho foi
arrebatado para Deus e para o seu trono.
E a mulher fugiu para
o deserto, onde já tinha lugar preparado por Deus para que ali fosse alimentada
durante mil duzentos e sessenta dias.
E houve batalha no
céu: Miguel e os seus anjos batalhavam contra o dragão; e o dragão batalhava
com seus anjos, mas não prevaleceram; nem mais o seu lugar se achou no céu”
(Apocalipse 12.1-8).
Este trecho causa
arrepio nos cristãos e torna-se a prova definitiva da existência de Satã e da
queda dos anjos, porém eu nunca vi uma interpretação mais irrisória em toda
minha vida sobre um texto tão profundo como este. Convém lembrar aos esquecidos
que o Apocalipse é um texto esotérico, não no sentido atual, que geralmente
remete a feitiçaria e misticismo, mas no sentido que era para os gregos.
Esotérico vem de uma palavra quase homônima do grego, que quer dizer
"ensinamento reservado aos discípulos de uma escola, que não podia ser
comunicado a estranhos" (ABBAGNANO). Era, portanto, dirigido aos cristãos
e, por isso, comunicado numa linguagem que os romanos não entendessem. Tentar
interpretá-lo de maneira tão simplória é no mínimo uma sandice.
Joguemos luz, então,
sobre o que diz realmente o Apocalipse. É preciso ensinar estes cristãos a ler,
para que não saiam por aí dizendo coisas que não foram ditas na Bíblia,
"pondo palavras na boca de Deus". Note que o texto fala de um
"varão", que "há de reger todas as nações com vara de
ferro". Quem seria este varão senão o próprio Jesus? Bem, isso nem eu o
nego. Note também que há um "dragão", que os crentes insistem em
dizer que é Satã, o mal encarnado. O texto fala que o dragão persegue uma
mulher para impedir o varão de nascer e depois houve uma batalha no céu. Alguém
notou algo estranho? A tal batalha aconteceu depois que Jesus nasceu e depois
até que ele morreu ("o seu filho foi arrebatado para Deus"). Se antes
de Jesus nascer e morrer Satã ainda não tinha sido expulso do paraíso, quem foi
o anjo caído que tentou Adão e Eva? Como Satã pôde ter feito isso se a ainda
não era um anjo rebelde e ainda não tinha lutado contra Deus e seus anjos?
O texto parece contraditório,
mas não o é. Está em contradição apenas com o que foi nos ensinado, com coisas
que não foram ditas na Bíblia. Foi-nos ensinado que Satã foi expulso do céu
antes da criação do mundo, mas em lugar algum da Bíblia diz isso, mas diz o
contrário, que foi bem depois. Foi-nos ensinado que o Diabo flagela pessoas no
inferno, mas na seqüência o texto diz que o dragão foi lançado na terra (Ap
12.9). Foi-nos ensinado que Satã é um ser real, mas este texto não diz isso.
O que nos diz o
apóstolo São João? Primeiramente o apóstolo nos fala em "céu" e
"terra". Mas o céu e a terra são o mesmo lugar, pois se referem a
estados de espírito. Céu é um lugar de pureza, de beatitude, excelência, onde
vivem aqueles que obedecem aos mandamentos de Deus. Distantes da terra, que é
um lugar de pecado, egoísmo, perdição, mundo sensível da matéria, enfim, é o
que chamamos de "mundano". Mas a Bíblia afirma que ninguém está
isento do pecado, por conta da desobediência dos nossos primeiros ancestrais,
nem mesmo os santos. O Dragão é o símbolo do pecado, mas não um ser que existe
independente de nós. Ele estava tanto no "céu" como na
"terra", e por estar mesmo entre os mais santos conseguiu arrastá-los
para o mundo do pecado ("sua calda arrastou após si a terça parte das
estrelas do céu -os santos-e lançou-as sobre a terra"). Note que as
estrelas a que João se refere não são anjos, caso contrário o apóstolo iria
entrar em contradição ao dizer que os anjos foram expulsos, depois da batalha,
para a terra, pois, afinal, como os anjos poderiam ser jogados na terra se eles
já estavam na terra antes da batalha?
Depois o livro diz
que "Miguel e seus anjos batalhavam contra o Dragão". Miguel, ou
Mikael para os íntimos, significa "o que é igual a Deus" em hebraico.
E quem seria igual a Deus senão o próprio Jesus, o Cristo? Provavelmente os Testemunhas
de Jeová estavam certo ao afirmarem que Miguel é o próprio filho de Deus.
Depois de vencer o Dragão, Jesus, ou melhor, Miguel o expulsou do céu. Isto
quer dizer que aquele que aceitasse Jesus como seu salvador agora estava em um
céu onde não existia pecado, sendo que o Dragão foi expulso do coração dos
santos e hoje vive somente na terra, entre os pecadores mundanos. Ao morrer
Jesus venceu o pecado, na forma do Dragão, juntamente com seus seguidores
(anjos): "eles o venceram pelo sangue do cordeiro", ou seja, Jesus já
estava morto quando venceu o Dragão.
Existe ainda o enigma
da mulher. Quem disse que se tratava de Maria deve estar um pouco arraigado nos
credos católicos. A mulher tinha uma "coroa de doze estrelas", o que
simboliza as doze tribos de Israel. Jesus, o dito Messias, veio do seio do povo
Judeu, simbolizado pela mulher. Depois de expulso o Dragão perseguiu a mulher
(Ap 12.13). Não conseguindo pegá-la perseguiu os filhos dela (Ap 12.17), ou
seja, os cristãos.
O Apocalipse nos de
Satã e que ele foi expulso pelo "sangue do cordeiro". Não há nenhum
anjo rebelde aqui, é apenas o pecado no homem. Ele já existia antes de Jesus
vir ao mundo e é a "antiga serpente, o diabo e Satanás". Era o egoísmo
recôndito no coração do homem, que somente muito tempo depois é que foi expulso
do convívio daqueles que guardam os mandamentos de Deus.
E quanto à tentação
do deserto? Não foi Jesus, o Cristo tentado por um Mal real? Provavelmente se
tratava de um mal interno como os outros demonstrados aqui. "Mas
como?"- Perguntaria um crente-"se Jesus, o filho de Deus não tinha
nenhum mal interior para que pudesse tentá-lo? Somente um mal exterior poderia
fazer isto." Não é bem assim. A Bíblia às vezes mostra-se contraditória e
surpreendente. Veja o que diz Lucas 18; 18,19:
"E perguntou-lhe
um certo príncipe, dizendo: Bom Mestre, que hei de fazer para herdar a vida
eterna? Jesus lhe disse: Por que me chamas bom? Ninguém há bom, senão um, que é
Deus."
Aqui Jesus confessa
claramente que ele também tem maldade dentro de si. Sendo assim, pode ser que
fosse mesmo o mal interior de Jesus que o tentava no deserto. Sem contar que
esta passagem é um plágio descarado da tentação de Buda. Conta a lenda que, sentado
sob a árvore Bo, Gautama Sakyamuni, o Buda, estava prestes a atingir o Nirvana
quando foi tentado pelo deus Kama-Mara (Desejo, ou Amor e Morte), para que se
desligasse de sua busca. Muitos identificam este deus com um demônio. Também
Jesus foi chamado ao deserto como uma forma de peregrinação espiritual. Não me
parece que exista apenas coincidência nestas duas histórias.
Outra parte que é
citada pelos cristãos é no livro de Isaías. No capítulo 14, versículo 12 ao 15
diz:
12. Como caíste do
céu, ó estrela da manhã, filha alva do dia? Como foste cortada por terra, tu
que debilitavas as nações?
13. E tu trazias no
teu coração: eu subirei ao céu, por cima das estrelas de Deus exaltarei o meu
trono, e no monte da congregação me assentarei, na banda dos lados do norte.
14. Subirei sobre as
alturas das nuvens, e serei semelhante ao Altíssimo.
15. E contudo
derribados serás no inferno, ao mais profundo do abismo.
Eis o trecho que
suscitou incontáveis disparates. Aqui
são mostrados os motivos que levaram Satã a se rebelar contra Deus: a vontade
de receber seus louvores e ser maior que o Altíssimo. Santo Agostinho traçou o
desenho do Satã ocidental baseado nesse trecho. Milton, no seu “Paraíso
Perdido” trata-o com mais detalhes. Ambos foram cruciais para formar o retrato
do Mal encarnado. Mas o que existe aqui não é apenas um erro de tradução, mas
de interpretação. O trecho em questão fala de Nabucodonosor, rei da Babilônia,
como ele mesmo diz no versículo 4: “então, proferirás este dito contra o rei da
Babilônia e dirás:...” Infelizmente essa parte é negligenciada,
intencionalmente ou não, pelos que defendem o capítulo 14 de Isaías como uma
revelação sobre Satã. A parte que diz “estrela da manhã” é uma metáfora com o
planeta Vênus, como era conhecido por ser a última estrela – como os antigos
pensavam que era – a desaparecer quando nasce o dia. Os romanos chamavam o
planeta Vênus de Lúcifer (lux fero) e na tradução para o latim preferiram
colocar o nome do planeta/estrela, ficando “Como caíste do céu, ó Lúcifer”. Por
conta da proliferação da lenda de Satã, este trecho foi visto como uma
revelação sobre os anjos caídos e sobre o nome real de Satã: Lúcifer. Talvez o
fato de quase toda a população européia durante a Idade Média ter sido
analfabeta tenha contribuído para a cristalização de tamanha falta de bom
senso, e a dificuldade das pessoas do nosso tempo em interpretar textos tenha
feito o mito perpetuar.
Também essa história
de rebelião não tem nenhuma novidade. É comum nas religiões antigas essas
lendas que relatam inimigos que tentam usurpar o trono dos deuses. No
masdeísmo, Ahura Mazda e seus imortais sagrados, uma espécie de anjos, viva em
eterno conflito com seu antípoda, Ariman e sua horda de demônios. Na Índia
havia a disputa dos Assurs, espíritos do mal que queriam tomar o lugar dos
Devas. Na mitologia nórdica quem ameaçava os deuses eram os gigantes e na
grega, os deuses viviam ameaçados pelos poderosos titãs, forças do caos e da
destruição. Assim sendo, o cristianismo apenas adaptou mitos amplamente
conhecidos para explicar a natureza do mal.
Na Idade Média esta
idéia distorcida a respeito do mal se proliferou. Pintado nos vitrais das
igrejas e na imaginação do povo Satã se cristalizou. Inspirações divinas à
parte, são interessante perguntar por que os primeiros hebreus não conheciam um
perigo desta dimensão? Por que Deus só o avisou a nós, sortudos cristãos? É
evidente que o Diabo é apenas uma criação dos hebreus por contato como outras
culturas. Depois de tanto ser temido ganhou vida, corpo, chifres e as feições
do inofensivo deus grego Pã. A palavra Diabo vem do grego "diabolos",
que quer dizer "caluniador”, “acusador”. A palavra demônio também vem de
uma palavra grega, "daimóm", que quer dizer simplesmente "espírito".
Até onde sei-corrijan-me se eu estiver errado-sequer existe uma palavra
hebráica para designar uma generalidade de entidades maléficas, vulgarmente
"demônios", ou seja, eles não existiam para os hebreus. Existe sim a
palavra hebraica Shatan, donde deriva o nome Satanás, que significa
"obstáculo", "opositor", "contraventor", ou
simplesmente "inimigo" mesmo. Mas além de não servir para outros
seres, esta palavra quase não aparece no Antigo Testamento.
Partiremos agora para
o lado mais filosófico da coisa. Os epicuristas perguntavam aos estóicos o
seguinte dilema: “Por que Deus não destrói o Mal? Deus não destrói o mal ou
porque ele não pode, ou porque não quer. Se ele quer, mas não pode então é
impotente, e isto um deus não pode ser; se pode, mas não quer é cruel, e isto
também um deus não pode ser; se não pode e não quer então é impotente e cruel;
se pode e quer, o que é a única resposta satisfatória para esta pergunta, então
por que Deus não o destrói?” Tomás de Aquino afirmou que o mal não tem uma
existência real, que é sem substância, como a escuridão e a cegueira. Estes são
apenas uma privação da luz ou da visão. De que é feia a escuridão? De nada,
absolutamente. Também o mal é da mesma natureza, é apenas uma negação da
bondade, uma ausência de bem. O filósofo alemão Leibniz seguiu o pensamento de
Tomás de Aquino.
Sendo assim, se
existe mesmo o tal Satã, ele foi criado por Deus e este não poderia produzir um
efeito mal, pois tudo que dele provém é bom em si mesmo. Satã só poderia se
tornar O Mal se separado totalmente de Deus e do bem. Mas mesmo que tudo que
ele fizesse fosse destituído de bondade, ele ainda seria bom, pois foi criado
por um Deus todo-bondoso. Admitir que Satã tem uma parcela de bondade é uma
heresia em religião, mas totalmente plausível se fôssemos nos basear pela
razão. Sendo assim, não pode existir um mal absoluto. Mas mesmo que o tal anjo
caído tivesse se distanciado completamente de Deus isso não melhoraria a
situação do Altíssimo. Este, sendo onisciente, saberia desde toda a eternidade
o que aconteceria se criasse Satã, saberia que ele iria se distanciar Dele e
que iria se emprenhar em afastar a humanidade do criador – com êxito, ao que
parece. Desta forma, como poderia Deus permitir estas coisas? De fato, ele não
poderia interferir no livre-arbítrio dos anjos, mas poderia não criá-lo se
soubesse o tamanho da catástrofe que isso iria causar. Também não há como mudar
o que aconteceu, pois o que aconteceu já era conhecido por Deus desde a
eternidade. Isso não condiz com a existência de um Deus absolutamente inteligente,
poderoso e bom. Se existe Satã é porque Deus quis que ele existisse, Deus quis
que ele tentasse Adão e Eva no Paraíso, Deus quis que ele desviasse seus filhos
do caminho da retidão, pois poderia ter evitado tudo isso e não o fez.
Guaita ilustra melhor
este pensamento no seu livro “O Templo de Satã". Ele nos joga o seguinte
dilema: "Espantamo-nos que os teólogos agnósticos, que favorece tão
lúgubre inépcia, mostrem-se infelizes e indignados se um amigo de lógica
inflexível encosta-o à parede e lança à queima-roupa o capitoso dilema: Deus, o
senhor diz, é todo-poderoso, onisciente, infinitamente misericordioso e bom.
Diz por outro lado que a grande maioria dos homens está votada ao inferno... é
preciso ser coerente mesmo em teologia. Então Deus quis o mal e o inferno. É em
vão que se objeta a inviolabilidade do livre-arbítrio, pois o mau uso feito
pelo homem se não foi previsto por Deus, sua onisciência falhou; se foi
previsto e não pôde ser impedido, nego seu todo-poder; se previu e podendo
evitar não o fez, contesto sua toda - bondade."
Mesmo que a Bíblia
afirmasse a categoricamente a existência de Satã – o que ela não faz, uma
análise dos nos mostraria que isso é impossível. Não há como um ser que foi
criado bom e puro se tornar totalmente seu oposto. Se o mal não é uma coisa
real e Satã é puramente mal, então ele não existe. Mas se o mal é uma coisa
real, quem o criou? O Deus todo-bondoso judaico-cristão? Embora trechos da
Bíblia afirmem que sim, como em Isaías 45, 7, isso parece ser contra o senso-comum
daquilo que chamamos cristianismo. Melhor seria ignorar este trecho e dizer que
o mal foi criado pelo anjo caído. Mas se ele tivesse criado o mal, ele seria um
Criador, assim como Deus, sendo assim elevado à categoria de um deus. O
Demônio, Diabo e Satanás nada mais é que uma historinha criada pela igreja para
manipular as pessoas pelo medo, para melhor manipulá-las ou para que elas
pudessem melhor exercer seus deveres éticos por simples medo do castigo, mas,
como bem disse Bertrand Russel, “uma virtude que tem suas raízes no medo não é
muito digna de ser admirada”.
REFERÊNCIAS:
REVISTA
SUPER INTERESSNTE; Edição 174; março de 2002; editora Abril.
SUSSOL,
Max; O Catolicismo é Um Plágio?; Coleção Revelações.
GUAITA,
Stanislas de; O Templo de Satã; Editora Três; Biblioteca Planeta.
ABAGNANO,
Nicola; Dicionário de Filosofia; Martins Fontes.
BÍBLIA
SAGRADA-EDIÇÃO PASTORAL.
TRADUÇÃO
DO NOVO MUNDO DAS SAGRADAS ESCRITURAS.
BÍBLIA
SAGRADA-NOVA TRADUÇÃO NA LINGUAGEM DE HOJE.
BÍBLIA
SABRADA; Sociedade bíblica do Brasil.
BLOOM,
Harold; Presságios do Milênio.
VOLTAIRE;
Deus e os Homens.
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